2013-03-12

Que fome!

"Podes vir para o pé de mim, que eu não te mordo" - disse-lhe ela com um ar sorridente e num tom quase desafiante.
"É precisamente por isso que não me aproximo mais" - retorquiu-lhe ele, encolhendo os ombros, mantendo-se à mesma distância.
Os pensamentos dele afastaram-se daquele espaço e daquele tempo e embrenharam-se noutros. A sua expressão tornou-se sombria, deixando subentender que o mundo onde o seu cérebro estava, para além de distante, não seria muito agradável, nem iluminado.
Lembrava-se de estar num espaço e num tempo onde o afastamento era nulo. Onde ambos estavam tão próximos que só a pele os mantinha afastados. Onde o toque da boca dela e dos respectivos dentes o tinham surpreendido. Onde as quase dolorosas marcas, sempre por ela negadas, eram exibidas com orgulho.
Num tempo que parecia ao mesmo tempo tão eterno e tão fugaz. Um espaço e um tempo tão afastados de si, cujo afastamento parecia tender para o infinito. Quase tão depressa quanto o seu sentimento. Sentimento que agora se aproximava de zero, contrariando toda a matemática e a lógica. Ou talvez tivesse sido a lógica contrariada desde o início. Desde aquele sistemático contestar e protelar da relação. Relação secreta, escondida. Quase inconfessável. Que muitos adivinhavam e tomavam como certa. E acertaram até certo ponto. Até ao ponto do não retorno. Um ponto que apesar de parecer de fuga apenas à vista, tinha sido de fuga inconsciente, mas definitiva. Onde a plasticidade da relação tinha sido levada longe demais, levada para lá do ponto de ruptura.
Durante meses os palavrões, as dentadas, os movimentos, os gemidos e o desejo não lhe tinham saído da cabeça. Martelavam-lhe o cérebro quase com o mesmo ritmo de passagem daqueles pensamentos recorrentes. Minuto a minuto, hora a hora, massacravam-no quase com a mesma intensidade dos momentos de prazer de que se recordava. E agora, nada.
"Estás cheio de fome?" - insistiu querendo ser agradavelmente simpática, enquanto olhava em redor para as mesas ainda repletas - "Eu tenho bastante".
"Tenho. Muita." - concluiu ele afastando-se para procurar algo onde ferrar os dentes.

2013-03-03

Mau azeite

É do senso comum que a água e o azeite não se misturam. Já não será tanto desse senso explicar o porquê. Recorrendo à Química, ficamos a saber que as moléculas de água atraem-se umas às outras com mais intensidade do que atraem as moléculas do azeite (ou de outro óleo qualquer). A separação entre estas duas substâncias não ocorre por rejeição entre as moléculas de água e as do azeite. Aliás, as moléculas do azeite até se sentem bastante atraídas pelas da água. Mas só conseguem aproximar-se das que ficam na fronteira entre uma substância e a outra. Na aproximação que as moléculas da água fazem entre si, expulsam todas as moléculas do azeite para fora do seu grupo.
Por causa da densidade do azeite ser menor que a da água, o azeite tende a ficar por cima da água, apresentando duas fases distintas, como quaisquer dois bons líquidos imiscíveis. Este ficar por cima, nada tem a ver com o carácter de uma ou da outra substância. Apenas acontece com naturalidade, pela relação entre esta propriedade intrínseca de uma e de outra substância.
A natureza não faz distinção de modo subjectivo. Objectivamente, a massa da Terra atrai (e é atraída) com mais intensidade pelas substâncias cuja densidade é maior. Neste caso, atrai mais fortemente a água do que o azeite, deixando-o a flutuar sobre a água, que fica no fundo, mais próxima da Terra.
Por muito que o azeite quisesse, a água não admite misturas.